24/04/08

In spirito anima exultat

JLJ
Está na Bhaia. É um prazer falar com ele. Disse-me que o Abramovic tinha 400.000 contos de lucros declarados por mês.
- Será feliz? - perguntei eu. Respondeu calmamente:
- Cada um é feliz ao seu modo. Há gente que se realiza na profissão, outros missionários... enfim. Nem sempre é o dinheiro. Isso é uma miragem capitalista... em que todos, ou quase todos sempre caímos.
A Bahia tem-me ensinado muito e hoje, pela primeira vez em muitos anos, de manhã, agradeci estar vivo e ter uma vida porreira. Um dia chego lá.


Europa
Sempre que me escrevem de Lisboa falam da depressão, recessão, neurose, infelicidade. Penso amiúde o que nos terá feito ficar assim. Acho que nós os europeus banimos o transcendental e a espiritualidade das nossas vidas. A moda fez-nos procurar o budismo e outras orientalidades que se subrepusessem ao catolicismo, mas, na verdade, mesmo que viajemos até aos mosteiros tibetanos, pratiquemos o Reiki, o Yoga, não acreditamos em nada. Isso fez toda a diferença e para mim, faz toda a tristeza. In spirito anima exultat.


Facto/Fado

Este quadro do Malhoa que a Tia Lalinha deixou ao Museu do mesmo nome tem uma fotocópia em plástico aqui no restaurante, emoldurado a preceito.

E o fado português, também numa versão guys.


Paulo Cesto
Nova rubrica (COMER)

Hoje estava com vontade de almoçar em Lisboa e fui à Adega da Tia Matilde, nos textos do Lourenço Viegas,

Restaurante apesar do restaurante
A vida pode ser dividida em refeições. Do jantar ao almoço, do almoço ao jantar. Há uma fase em que o jantar é rei. Jantar fora, ir jantar a casa da Teresa, convidar os Paulos para virem cá jantar. É a idade da estupidez, das desoras, dos jantares mais pelas pessoas ou pela bebida do que pela comida. Quando começa a arder a azia, ou se fecham as malhas da família, passa-se do jantar fora ao almoço. Almoçamos um dia destes, no Chiado ou no Marquês. O almoço, mesmo com colegas, ou entre casais, é o ponto de fuga da família, do trabalho. A comida pode ou não ter centralidade. Depois, há alguns dos chamados escolhidos para acederem ao Olimpo da refeição: o jantar à luz do dia, de preferência terminado ao lusco-fusco. Jantar de dia é viver dentro de um quadro do Hopper. A Adega da Tia Matilde fura um pouco aquela tripartição. Um restaurante que se sobrepõe às refeições. É o reino timelessness. Pessoas que almoçam como jantam e jantam como almoçam. Que se demoram, sem se arrastarem, com um arroz de lampreia e babete. Que bebem uma atrás de outras garrafas de branco e de tinto, sem que o álcool entorpeça a deglutição da caldeirada forte e reconfortante. Casais a almoçarar, partilhando travessas – e que gosto dá vê-los, à espanhola, primeiro um cabritinho, ele serve-a, e depois, para terminar, uns filetes saborosos sem serem fritos demais (hei-de reler aquela crónica do Miguel Esteves Cardoso em que, naquele seu jeito de ser melhor que os outros, disserta sobre o problema da justificação na relação dos portugueses com a comida. Que nunca comem nada por comer. É sempre para começar, acabar, amaciar, preparar o estômago...).Começo pelo cocktail de camarão, retro sixties, uma armadilha em que raramente não caio. O da Tia Matilde lá está, vieille cuisine a boa temperatura (às vezes, noutros lados vem quase gelado e com crosta no molho de tanta espera na arca), fresco, voltar a ser criança e a ir ao restaurante ao Porto com a Tia Micas quando o pedaço de camarão encontra o doce do molho. Na Tia Matilde é também de boa nota o marisco. E como é bom mariscar sem ser numa marisqueira. Na lista vem que o cabrito não é cabrito é cordeiro, acto de verdade inédito. Tantas vezes se esquece, ou se quer esquecer por essas ementas afora, que a cabra dá o cabrito (o cabrão, não), a ovelha dá o carneiro (mais velho) e o cordeiro, anho ou borrego (mais novos).A perdiz bem estufada (não sei se selvagem, se de aquário), um cozido reluzente, batatas sempre boas, em pala as da perdiz, bem assadas as do cabrito (que era cordeiro) e macias as do bacalhau, a murro. Empregados eficientes que não dão muita confiança a estranhos, com aquela brusquidão de quem serve muitos doutores que comem o salário em lampreia e o bebem em vinhos caros. Trazem sobremesas catitas, arroz-doce bem amarelinho (amarelo ficava mal), tarte de maçã em camadas, maçãs bem assadas. Depois é acabar o almoço, descer pela escadinha à garagem, entrar no carro e apostar. Estará de dia ou de noite lá fora? A Adega da Tia Matilde é um restaurante de confiança. Apesar do nome. Apesar do local. Apesar de não ter janelas. Apesar da cabeça de touro cornudo com o cachecol da selecção nacional de futebol. Um bom restaurante. Apesar do restaurante.


Casa do Bento
- Está lá Mãezinha.
- Querido! Não ligaste no Domingo. Fiquei preocupada - anunciou ela.
- A mãe também podia ter ligado, também sabe o número.
- Pois podia, mas tu telefonas sempre. Tenho dormido muito mal de noite...
- Sendo eu a telefonar é mais barato - continuou ele ao telefone.
- Oiço muito mal - retorquiu ela. -Tenho dormido muito mal - afirmou de novo como que à espera da pergunta.
- Porquê? - correspondeu ele.
- Ora, é a velhice, estou para a ficar velha.
- Mas se a mãe dorme a sesta depois de almoço, dorme um pedacinho no sofá em frente ao televisor antes de jantar, e ainda dormita ao serão a ver a novela, chega a cama e não tem sono. Parece-me óbvio.
- Deus te proteja de estares sem dormir de noite. É muito mau para a saúde.
- A mãe dorme. Só não dorme de noite, por isso evite fazê-lo de dia.
-Olha sabes que mais? Os jovens agora não têm paciência para conversar com os mais velhos.

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